ASSENTAMENTO

January 2019
Quadrum Gallery, Lisbon
Dimension: 6,5 x 18 x 1,4 meters Draining concrete and wood Curator: Sara Antónia Matos
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Quando o número é mencionado, derepente, como uma evidência atirada à cara, a realidade da obra ganha umadiferente espessura: trezentas toneladas. Ou quase. Não importa para o caso. Trezentastoneladas de betão drenante dentro do espaço da Galeria Quadrum.

Nas imagens não parece tanto, nãoimaginamos que uma tal massa, um tal peso, possam estar naquele lugar. Paracompreendermos um pouco melhor a obra, temos de falar do próprio espaço daGaleria situada no complexo dos Coruchéus, um projeto do Arquiteto FernandoPeres Guimarães inaugurado em 1962 (ano de nascimento do próprio AntónioBolota), encomendado pela Câmara Municipal de Lisboa para ateliês de artistas.Onze anos depois viria a surgir, no mesmo complexo, a Galeria Quadrum, galeriade arte dirigida por Dulce D’Agro, espaço experimental e pioneiro onde foramrealizadas algumas das mais importantes exposições em Lisboa desde a suainstalação no espaço que deveria ter sido o refeitório dos Coruchéus até aoencerramento em 1995. A história da Galeria Quadrum é a memória doexperimentalismo em Portugal nas décadas de 1970 e 1980, o lugar por ondepassaram Alberto Carneiro, Fernando Calhau, Gina Pane, Ernesto de Sousa, entremuitos outros artistas. Passando por várias vicissitudes, o espaço foi devolvidoà sua configuração arquitetónica em 2019, tendo António Bolota sido convidado arealizar um projeto para o espaço, agora devolvido à sua condição original,desentupido dos painéis que forravam as paredes e novamente aberto à luz e àcidade.

É sobre esta memória, sobre odepósito de referências e histórias da Quadrum, que Bolota pensou o seuAssentamento. As peças de betão de formas simples -- um léxico escultóricobásico (círculos, triângulos e retângulos, para além da memória das peças em Le I, evocadoras das esculturas de Robert Morris de 1966) --, sucediam-se emcamadas sobre barrotes de madeira, criando uma horizontalidade que, no entanto,deixava passar o ar e a luz. A grelha dos sintagmas de betão, regularizados apartir de uma área comum (cada módulo deveria poder inscrever-se numa área de 2X 1 m), ocupou o espaço central da galeria, deixando a circulação para aperiferia, mas abrindo um ponto de vista sobre a escultura, mais encostada aofundo do espaço, que é o seu tema.

E é por isso que o verdadeiroassunto da escultura é a porosidade: à memória, ao tempo, à história, mas tambémà luz, ao ar e à água. E é por isso que a escultura não podia pesar trezentastoneladas. Ou pesava muito mais, nas três camadas imensas de memórias, ou o seupeso não era senão o da luz e do ar que a atravessava vinda da grandesuperfície de vidro que olha para o exterior.

Air

When you first hear the number, when it is suddenly thrust in front of you like a piece of evidence, the reality of the work takes on a different dimension: three hundred tonnes. Or close enough – it doesn’t really matter in this case. Three hundred tonnes of porous concrete inside Galeria Quadrum.It doesn’t seem that much in the images; we are unable to imagine such mass, such weight, in that place. To better understand the work, we must speak of the gallery space itself, located in the Coruchéus complex, a project by architect Fernando Peres Guimarães that opened in 1962 (the year António Bolota was born), commissioned by Lisbon City Council to house artists’ studios. Eleven years later, Galeria Quadrum opened in the same complex, occupying the unit that should have been the Coruchéus canteen, an art gallery directed by Dulce D’Agro that provided an experimental and pioneering space for some of the most significant exhibitions in Lisbon until its closure in 1995. The history of Galeria Quadrum is the story of experimentalism in Portugal during the 1970s and 80s, a place frequented by artists such as Alberto Carneiro, Fernando Calhau, Gina Pane and Ernesto de Sousa, among many others. After various ups and downs, the space was returned to its original architectural configuration in 2019 and António Bolota was invited to create a project for the space, now unobstructed by the panels that used to line the walls and once again open to the light and to the city.It was with this memory in mind, and the layers of references to and stories of Quadrum, that Bolota planned his Assentamento (Laying). The basic shaped concrete pieces – a fundamental sculptural lexicon (circles, triangles and rectangles, as well as pieces in L and I shapes recalling Robert Morris’s sculptures from 1966) – are stacked in layers over wooden beams, creating a horizontal aspect which still allowed air and light to get through. The grille of concrete segments, organised within a common area (each module would fit into an area of 2 × 1 m), occupied the centre of the gallery, allowing for movement around the edges, but opening up a perspective over the sculpture, slightly closer to the back of the space that is its theme.And that is why the true subject of the sculpture is its porosity: permeated by memory, by time, by history, but also by light, air and water. And that is why the sculpture could not weigh three hundred tonnes. Either it weighed much more, in those three immense layers of memories, or its weight was no more than that of the light and air that reached it through the large glass surface with a view outside

"O espaço no interior da galeria estava quase inteiramente ocupado por uma estrutura instável, feito de peças de betão armado empilhadas em camadas, divididas por barrotes de madeira. O aspeto geral era de uma construção inacabada, uma obra em curso. Havia pouco espaço para espectadores e visitantes, o que com muita evidencia tinha sido procurado, estudado, arquitetado. O lugar era a galeria Quadrum, o mítico espaço dedicado à arte contemporânea e fundado por Dulce d'Argo nos anos 70. A curadoria vinha assinada por Sara Antónia Matos. O artista era António Bolota. Que escolheu a palavra Assentamento para intitular a sua exposição. Com uma formação pluridisciplinar - como engenheiro e artista plástico -, António Bolota tem vindo a interrogar sistematicamente as fronteiras entre escultura e arquitetura. Em Assentamento, partia de um edifício com um peso histórico evidente na história da arte portuguesa, foi agora despido de todos os elementos funcionais e decorativos que existiam enquanto foi galeria comercial. De certa forma, este é hoje um espaço destinado ao puro acolhimento da obra de arte, que pode não só dialogar com essa história como alastrar visualmente para o espaço agora envolvente. Sara Antónia Matos, mencionava, a propósito da exposição, este diálogo. E também uma prática que se articulava sempre no limite das fronteiras, adiando um ponto final na escultura que está eternamente por se materializar.

..."

in Jornal Público, Ípsilon, 20 de Dezembro de 2019, p.14