UNTITLED

January 2008
Avenida 211, Lisboa
Variable dimensions Steel, insulation rockwool and plaster.
TEXT BY

Beam

What artists do in the studios where they work is their business. Sometimes, at least, because other times it becomes our business, at the moment when they transform their activity in the studio into what they decide to show us. This has been the case since the 19th century, since Géricault, Courbet, Makart or – from the 20th century onwards – Bruce Nauman, of course, stating definitively that everything the artist does in the studio is art, demonstrating it by filming himself moving around the space of his studio, measuring himself against that space and making his body its unit of measurement.At the turn of this century, António Bolota had a studio in a 19th-century residential building, vacant but luxurious, at number 211 in Avenida da Liberdade, in Lisbon. Because of his activity as an engineer and builder, he was able to occupy the building whilst waiting for the property transaction to be completed, taking care of its upkeep and inviting other artists to take up residence there (including Francisco Tropa, João Queiroz and Pedro Barateiro, among many others), regularly presenting their work and housing a lively and dynamic artistic community (as well as the studios, the building included various independent exhibition spaces such as Kunsthalle Lissabon, Parkour, Barbershop and the Sala Bébé). The Avenida 211 project expanded and from 2008 became a vital point of reference for contemporary music in Lisbon, with evening events organised by the Associação Filho Único combining a diverse range of musical experiences, from improvised music to African music or the world of pop.In the first exhibition held there, António Bolota converted his movement around his studio, the circuit he trod between rooms and the way he occupied the space, into an intervention on the floor above his third-floor studio. The artist materialised his route by placing a grid of three steel and plaster beams beneath the ceiling, which crossed the rooms to reproduce the flows of recurring steps he took across the floor of his studio. In fact, the new structure, simultaneously airy and brutally solid, deviated from the orthogonality of the space, but without imposing its route – quite the opposite, it invited movement but under the banner of a detour, through the walls, like ghosts. And that subject, that wandering, thus became our own

Relâmpago transfigurador

Para ver é preciso deixar de ver - uma conversão. "Sêde uma nova criatura! É o grito constante do apóstolo. Este grito é um relâmpago transfigurador, o mesmo que o deslumbrou, na estrada de Damasco. Ninguém sentiu, como ele, as intimas convulsões reveladoras. Foi o primeiro homem que nasceu velho e morreu novo", escreve Teixeira de Pascoaes no seu "São Paulo" (Assírio & Alvim, Lisboa, 1984). E acrescenta, adiante: "Dói-lhe a testa no sítio onde o relâmpago lhe bateu; dói-lhe como um sentido que desperta. É um sofrimento aliviante, asa que se fere, libertando-se. Está ainda cego mas ouve tudo." A primeira visão chega através do ouvido, depois, uma espécie "after-image", imagem dupla, um pouco desencontrada, começa a dar sentido à cena. No fim, no infinito, as linhas paralelas, positivo e negativo, luz e sombra, encontram-se.

No espaço Avenida, numero 211, está uma das mais notáveis exposições coletivas realizadas em Portugal nos últimos anos - apetece mesmo dizer que esta é mesmo a mais exemplar de todas, porque tudo está certo, justo, preciso na sua manifestação. É uma oportunidade única para descobrir como, sem pressão, sem pressa, se concebeu uma iniciativa onde as diferentes obras apresentadas dialogam, de facto, não só com o lugar da sua visibilidade - aos fins de semana, entre as 14H e as 16H -, mas também entre si. Há uma comunhão, uma comunidade, entre e de todos os participantes, muitos dos quais, desde à muito têm sido responsáveis pela definição de um território singular, único, para a arte. Propondo um diálogo intemporal com o ato criativo: tudo provém de um fundo sem fundo, de uma parede sobre o qual se inscreveu uma imagem, que continua a dizer-nos de si - um enigma.

Deixar de ver para o olhar regressar. Uma catarse, esse longo caminho de ascese, portanto. E quem entra nas salas do 4º andar começa pela luz, pelo desenho, para acabar na sombra, diante de um corpo jacente e uma montanha de luz, escultura e emblema, que evocam uma distante e real historia de amor - ou todas as histórias? É preciso ir de dia para se chegar aos trabalhos da ala esquerda do edifício. Numa das divisões com lareira, quatro pinturas realizadas diretamente nas parede por João Queiroz, "a pele, a linha, o lago e a sombra". A leitura faz-se da esquerda para a direita. Esta é a primeira chama da exposição, outras irão aparecer, transportando o espectador para lugares distantes tanto no tempo como na geografia. Por agora, é preciso demorar algo mais e agarrar esta espécie de fábula japonesa, que ilumina este espaço. E é possível que, de repente, se ouça o toque de um sino.

Segue-se, numa outra sala, "Pai e Mãe", de Francisco Tropa: duas linhagens que se cruzam e vêm de outras posições, a linha do olho que é afirmada pela presença de duas copias em bronze do olho de "David" de Miguel Ângelo; e a linha do crânio, duas caveiras, no mesmo material e também suspensas. O ver e o pensar, em troca permanente. A meio, penduradas e transparentes, duas esculturas em vidro, uma com um liquido azul, a outra com um liquido rosa; masculino e feminino. Representação simplificadas de aparelhos digestivos, estes trabalhos sugerem um casal que se entreolha, sem nunca chegar a tocar-se. Máquinas celibatárias - numa extremidade a boca, na outra o ânus, unidos pelo digerido. Refira-se que "Pai e Mãe" são entidades abstratas, fundadoras, que apontam possíveis ascendências e descendências, em tudo diferentes das relações do tipo familiar.

Os trabalhos em grafite de Thierry Simões, exercícios que dialogam entre si, quase a tocar o invisível, dão continuidade ao percurso proposto. Vê-se depois, na sala seguinte, um painel com desenho de Jorge Queiroz, os quais provocam estranheza a quem os tenta decifrar. Há uma sequencia, um movimento, e podia aqui utilizar-se com propriedade o plural - sequencias, movimentos -, personagens; pontos e traços, que definem um território impenetrável, porque não reconhecível do exterior. Estes ecrãs traduzem um universo em permanente contração e extensão - há quem tivesse usado a imagem de uma esponja para definir estes lugares que nos atraem e nos expulsam.

In Jornal Público, Ípsilon, 5 de Dezembro de 2008, p. 40.